Aos
Domingos e também nas festas e solenidades, o Livro dos Evangelhos
(Evangeliário) costuma ser levado na Procissão de Entrada e elevado pelas mãos
de um diácono ou leitor. Colocado sobre o altar, ele permanece até o momento da
Aclamação ao Evangelho. Durante a Liturgia da Palavra, é transladado, em
procissão, até o Ambão, de onde é proclamada a perícope evangélica proposta
para aquela ocasião, à qual todos escutam de pé. O Livro é incensado,
iluminado, assinalado, “lido” e beijado. Com ele a assembleia pode ser
abençoada e, em alguns casos, segundo o costume do lugar, apresentado à
comunidade para que lhe ofereça um gesto de aclamação. Logo depois é conduzido
a um lugar de dignidade.
Sabe-se
que o uso de um livro específico para a proclamação evangélica no contexto da
Liturgia da Palavra aparece no século VI e vai perdendo importância a partir do
século XIII, com o surgimento do Missal plenário que traz todos os textos para
a Celebração Eucarística, incluídos os Lecionários. Esse uso é comum às Igrejas do Ocidente e do
Oriente. À medida que o ano litúrgico foi sendo estruturado nas diversas
tradições eclesiais, os textos evangélicos de Mateus, Marcos, Lucas e João
foram, paulatinamente, sendo organizados com base na sua utilização no culto divino.
Assim
como o Verbo se fez Carne…
Bento
XVI, na exortação pós-sinodal Verbum Domini, oferece-nos uma síntese cuidadosa
a respeito da consciência eclesial sobre a expressão Palavra de Deus. O Papa emérito singulariza a compreensão da
Igreja sobre a revelação divina construindo uma espécie de caminho percorrido
pelo diálogo divino. Por ter sido chamado à existência pelo Verbo, o mundo
constituiu-se um liber naturae , já que é pela obra da criação que o Verbo se
dá a conhecer por primeiro, exprimindo-se em um segundo momento pela Escritura
e sua transmissão (Tradição). Sua referência predileta é o prólogo de João, no
qual se afirma que tudo foi chamado à existência pelo Verbo, pois ele é
pré-existente e – como vimos na primeira catequese – é referência absoluta para
a criação do mundo e do ser humano segundo as tradições judaica e cristã.
Esse
Verbo, que está na origem e também na finalidade de tudo quanto existe, não
permanecendo preso à autorreferencialidade divina, mas sendo dado no ato
criador, chegou e penetrou a história humana. Progressivamente, mostrou-se,
sobretudo, pela voz dos profetas e perspicácia dos sábios, até que “O Verbo se
fez Carne e habitou entre nós.” Seguindo de perto as intuições de João em seu
evangelho, reconhecemos neste versículo da Escritura que se tornou fórmula
basilar da fé cristã, que a misteriosa presença de Deus que, ao criar o
universo, se dá a conhecer (comunicando-se e doando-se neste diálogo), fez-se
ser humano. Assim, depois de pronunciar o ser humano, falar mediante seu existir
e dialogar com ele, Deus-Palavra se faz pessoa humana.
A
Palavra de Deus, cujas “Sagradas Escrituras são o ‘testemunho’ (…), o memorial
canônico, histórico e literário que testifica o acontecimento da Revelação
criadora e salvadora”, adota um rosto em Jesus de Nazaré. Assim, “A Palavra Divina
e Eterna entra no espaço e no tempo e assume um rosto e uma identidade
humana”. Esse é o sentido preciso de
Lógos, sarx, eghéneto, presente no Prólogo joanino.
… compendiando-se em Jesus de Nazaré…
Na
Verbum Domini, encontramos em sua cristologia da Palavra uma expressão
tradicional da época patrística em que se diz que “O Verbo abreviou-se”. A citação é de Orígenes num comentário da
versão grega do Antigo Testamento, de uma passagem do Profeta Is 10,23: “Lógon
syntetmeménon poései ho Theós en tê oikomenen hole” que pode ser traduzido por
“o Senhor, pois, abreviará e consumará a sua Palavra sobre toda a terra” . Orígenes interpreta esta passagem aplicando-a
a Jesus:
O
próprio Verbo do Pai e Sabedoria de Deus, por meio da qual foram criadas todas
as coisas, visíveis e invisíveis, tenhamos de crer que estava circunscrita
dentro dos limites daquele homem que apareceu na Judeia. Ainda mais: essa fé
nos convida a aceitar que a Sabedoria de Deus penetrou no seio de uma mulher,
que nasceu como menino, que prorrompeu em prantos como qualquer outro menino
que chora. E, por fim, dele se conta, que se perturbou na presença da morte,
como o próprio Jesus confessou dizendo: “Minha alma está triste até a morte; e
finalizando, que foi conduzido a uma morte considerada pelos homens como a mais
ignominiosa, ainda que ressuscitasse ao terceiro dia.
O
Papa Francisco, na recente Bula Misericordiae Vultus, afirma que Cristo é o
rosto da misericórdia do Pai, de modo que “Tal misericórdia tornou-se viva,
visível e atingiu o seu clímax em Jesus de Nazaré”. A Encarnação é a grande obra misericordiosa
de Deus que é Pai, Filho e Espírito Santo, cuja glória em Jesus Cristo se nos é
dada a conhecer plenamente. Ao vir morar
com os seres humanos, entretendo-se com eles como outrora no paraíso (Irineu),
Jesus é visto na tradição neotestamentária e também patrística como fundamento,
síntese e sentido de toda a História da Salvação. “No Mistério Pascal,
realizam-se as palavras da Escritura (…) acontecimento que contém em si mesmo
um logos, uma lógica: a morte de Cristo testemunha que a Palavra de Deus se fez
totalmente ‘carne’, ‘história humana’” e segundo o Apóstolo, por causa da força
criadora do Verbo, “a palavra da Escritura cumpre-se em Jesus que ressuscita
antes de começar a corrupção.”
…
a Palavra se fez Livro…
Aquela
humanidade do Verbo realizada na pessoa de Jesus, que morre e ressuscita,
tornou-se mediação, instrumento para a salvação dos seres humanos. O objetivo da encarnação, da parte de Deus, é
tornar-nos parte de sua intimidade, inscrevendo-nos no seio da comunhão
trinitária. Associados a Cristo Jesus, assumindo em nós sua morte e
ressurreição, adentramos no coração familiar daquela comunidade que é o Pai,
Filho e o Espírito Santo, os três que – eternamente – se doam numa mutualidade
que a tradição patrística condensou no termo pericorese. Esse é o conteúdo da revelação que é a origem
mesma de nossa fé.
A
proclamação do Evangelho na Assembleia Litúrgica, precedida ritualmente pela
procissão de entrada, se exprime legítima e explicitamente como cume da
Liturgia da Palavra e reitera esses fatos concernentes ao Verbo na comunidade
dos fiéis. Neste ponto, compreendemos a Celebração Eucarística e demais orações
litúrgicas como realização da Palavra Divina. Nessas celebrações o Verbo de
Deus é, de novo, entregue por amor aos seus que estão no mundo numa
significativa distância do Paraíso. Inserida no contexto da transmissão da
Palavra Divina, a Liturgia é compreendida como ação de Deus em favor de sua
criação, sobretudo porque o Pai continua a oferecer-nos seu Filho como o fizera
“Naquele Tempo”, por Ele, com Ele e n’Ele concede-nos sua presença no seio da comunidade dos fiéis: “O
Senhor esteja convosco! Ele está no meio de nós!” Uma ação misericordiosa que recupera em nós a
condição de logos, de palavras na Palavra. São Boaventura – que juntamente com
a grande tradição dos Padres Gregos, vê todas as possibilidades da criação no
Logos – afirma que ‘cada criatura é Palavra de Deus, porque proclama Deus.’”
No
ato da proclamação do Evangelho, não só o livro recebe o hálito vivificador do
leitor vertendo a letra morta em voz viva e ativa do Filho; a letra
ressuscita para que a Assembleia seja
revivificada na vida entregue do Verbo Encarnado. Deste modo, assim como o
Verbo se fez carne, a Palavra se faz livro, uma vez que “o Corpo do Filho é a
Escritura que nos foi transmitida”;
assim, aquilo que o Corpo morto e ressuscitado de Cristo registrou do
derramamento do Espírito na história humana, é transmitido no hoje da Liturgia
aos seus seguidores e seguidoras, permanecendo, então, inscrito no coração de
seu Corpo Eclesial.
…
para que sejamos Escritura de Deus.
Como
conclusão, podemos dizer que há uma transformação que se dá pelas vias rituais
das celebrações litúrgicas, de forma que o mundo é abraçado pelo amor de Deus,
a começar pela Assembleia Litúrgica. Mas como é possível reconhecer os efeitos
do acontecimento litúrgico na vida do mundo? Como o Evangelho – que é Cristo em
nossa carne – rejuvenesce o velho ser humano e renova a face da terra? Que tal
começarmos a desencavar os sinais desta metamorfose que o Verbo morto e
ressuscitado realiza em nós e entre nós?
1Cf.
Introdução ao Evangeliário da CEI. Site:
http://www.edizionimessaggero.it/evangeliario. Consulta realizada dia 14 de
abril de 2015.
2BENTO
XVI. Verbum Domini. Exortação apostólica pós-sinodal. Paulinas: São Paulo, p.
15-45.
3Idem,
n. 7.
4Cf.
MARIN, Bruno. Parola e Comunità. In FERRARI, Matteo. Celebrare la Parola.
Edizioni Dehoniane Bologna: Bologna, 2009, p.13-16.
5Mensagem
final da XII Assembleia Geral do Sínodo dos Bispos sobre o tema “A Palavra de
Deus na vida e Missão da Igreja”, n. 3. Disponível:
http://www.vatican.va/roman_curia/
synod/documents/rc_synod_doc_20081024_message-synod_sp.html. Consulta realizada
em 14 de abril de 2015.
6Expressão
coletada por Bento XVI na exortação pós-sinodal Verbum Domini.
7Idem,
n. 4.
8BENTO
XVI, Verbum Domini, 12.
9Trata-se
de uma variante de Is 10,23 presente apenas na Bíblia Grega (Septuaginta) e que
não figura no texto hebraico do qual a maioria de nossas traduções, de alguma
forma provêm. Paulo em Rm 9,28 cita esta passagem da seguinte forma: “porque,
dando execução, e abreviando os tempos, Deus cumprirá sua palavra sobre a
terra” (Bíblia de Jerusalém); “pois o Senhor cumprirá plena e prontamente a sua
Palavra sobre a terra (TEB); “Porque o Senhor cumprirá logo, e de uma vez, a
sua Palavra em todo o mundo” (A Biblia na linguagem de hoje). A versão latina
anterior à NV verte Rm 9,28 por “Verbum enim consummans et brevians faciet
Dominus super terram”.
10ORÍGENES,
Sobre os princípios 2,6,1-2.
In . BONDAN, Fernando José. Lecionário Patrístico
Dominical. Vozes: Petrópolis, 2013, p. 39.
11http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/apost_letters/documents/papafrancesco_bolla_20150411_misericordiae-vultus.
html. Consulta realizada em 14 de abril de 2015.
12Cf.
Antífona de Entrada da Solenidade da Santíssima Trindade.
3Cf.
Catequese Mistagógica sobre a Liturgia da Palavra.
14BENTO
XVI, Verbum Domini, 13.
15Cf.
Constituição Conciliar sobre a Sagrada Liturgia “Sacrosanctum Concilium”, n. 5.
16Pericorese:
inter-habitação das Pessoas Divinas – um só coração e aproximando-se do coração
de Jesus, expressão maior do amor do Pai e do Espírito Santo sobre todos nós. J
B PEREIRA. João Damasceno, santo (675 –
749), comparou a Trindade de Deus à brincadeira de roda de crianças. Uma
criança fica ao centro enquanto outras cantam e rodam sobre ela. E outras vão
entrando no lugar da que está no centro. A essa brincadeira, os gregos chamavam
de Pericorese. Com isso, as pessoas da Trindade não existem uma sem a outra.
Contempla e adora o teu Deus Uno e Trino ou Triuno. “A Trindade nos convida a
participar de seu amor. Construindo e vivendo relações fraternas, entramos, de
algum modo, na grande “dança do amor” de Deus.” Disponível em:
http://www.recantodasletras.com.br/juvenil/4852363. Consulta realizada em 14 de
Abril de 2015.
17Versão
portuguesa para o Dominus vobiscum da Liturgia Católica ocidental.
18BENTO
XVI, Verbum Domini.
19WELTER,
Johan. Citado por BIANCHI, Enzo in. VV.AA. L’evangeliario nella storia e nella
liturgia. Edizioni Qiqajon: Bose, 2011 p. 9.
20Mensagem
final da XII Assembleia Geral do Sínodo dos Bispos sobre o tema “A Palavra de
Deus na vida e Missão da Igreja”, II,5.
Pe.
Márcio Pimentel
Liturgista
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